sexta-feira, 24 de julho de 2009

O povo não tem o direito de fallar em reivindicações!

Nota 14 — Registe-se, a título de curiosidade, que o tema religioso fora motivo de acesa polémica entre Raul Proença e Arthur Bivar, nos primeiros meses de 1909. O primeiro utilizava o jornal "Vanguarda", o segundo retrucava no "Portugal". A polémica, uma das que Raul Proença dedicou ao tema, iniciou-se com um artigo de sua autoria publicado a 27 de Janeiro, só vindo a encerrar a 17 de Março. Em debate "Sciencia e Catholicismo". Para Proença, progresso e liberdade não rimavam com religião:
"É um erro — querer pôr de accordo o progresso e a religião.
É uma heresia — querer ser ao mesmo tempo pela liberdade e pela egreja (…)
Vejam se ha alguma coisa de mais antinomico com as conquistas da Sciencia e do Progresso. Segundo a Sciencia, parar é morrer, evoluir é viver. As ideias transformam-se, as nações progridem, os povos emancipam-se. Segundo a Religião, não se pensa o que se póde pensar, mas o que a Egreja quer que se pense. Segundo ella, o povo deve ficar na perpetua escravidão, escravo de reis e de tyrannos, porque, segundo Gregorio XVI, 'não tem o direito de fallar em reivindicações'!"
Pires, Daniel. "Raul Proença. Polémicas", Publicações D. Quixote, Lisboa, 1988, pág. 209 a 227.

O elemento clerical reaccionario

O número 16, de 24 de Julho de 1909, abria com a transcrição de um artigo publicado no jornal "A Lanterna", e que tratava dos jesuítas (Nota 13). Eis a justificação do recurso à "Lanterna", e para este assunto específico:
"A actividade em que ultimamente tem entrado o elemento clerical reaccionario, para dominar no paiz e reconquistar o poderio, de absoluta supremacia que teve em eras passadas, pede um trabalho persistente e seguro de todos os liberaes, para conjurar o tenebroso perigo que ameaça a sociedade portugueza.
Uma recente publicação, A Lanterna, considera e bem, que para uma acção de luta contra esse perigo, contra o ultramontanismo, se torna necessario divulgar, tornar conhecida a organisação da tenebrosa seita. E dá n'esse capitulo, notas bem curiosas e que pelo muito interesse que teem, aqui archivamos em transcripção". (Nota 14)

Nota 13 — "A Lanterna" era um opúsculo semanal de inquérito à vida religiosa e eclesiástica portuguesa, e tinha como director o jornalista Avelino de Almeida.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Exhibiu algumas sentidas e commoventes marchas fúnebres

O jornal não revelava as simpatias políticas do abastado proprietário. Não sabemos se, com saúde, Joaquim Vaz Collaço teria comparecido ao comício no salão de Bernardino Padilha. Finou-se em Foz de Arouce no dia dos tumultos na Lousã. Foi a enterrar no dia seguinte, com mágoa da família e lucro dos pobres…
"O seu enterro, que se realisou no dia 12 pelas 5 e meia horas da tarde foi muito concorrido, o que bem attesta a grande sympathia de que gosava.
Acompanhava o feretro, alem da Irmandade do S. S.mo. e da Philarmonica Fraternidade Poiarense, — que exhibiu algumas sentidas e commoventes marchas fúnebres durante o trajecto, — um grande numero de amigos e parentes do finado, de Foz d'Arouce, Louzã e Poiares.
Na rectaguarda do prestito seguia um grande numero de pobres a quem foi distribuida uma esmola".

Tiros de "rewolver" e uma bengala perdida

A secção vulgarmente designada de "Carteira", na qual se dava conta das chegadas, partidas, doenças e demais fait-divers dos ilustres, dedicava um espacinho a Samuel dos Santos:
"Veio de Lisboa assistir ao comicio de domingo este nosso amigo e dedicado correligionario, de Serpins".
O jornal, no que aos tumultos dizia respeito, reportou lançamento de pedras e alguns tiros de "rewolver". Não notou qualquer desaguisado tratado à bengalada — a bengala perdida num estabelecimento hoteleiro da vila não deveria pertencer a nenhum dos excursionistas:
"BENGALA — Está depositada no Hotel Carranca, que o proprietario d'esta casa entregarà a quem provar pertencer-lhe, obrigando-se o dono da referida bengala a pagar a importancia d'este annuncio".

As senhoras que mandaram as creadas desfraldar panos negros

A edição de 16 de Julho não se finava pelo relato dos distúrbios, e pela publicação de algumas das intervenções. A páginas três surgiam algumas notas à margem — o proprietário do jornal desmentia ter afirmado que o pessoal da Fábrica do Penedo também atirara pedras; um padre não nomeado arregimentara os seus criados e grande número de visinhos para colaborarem na arruaça; as portas da rectaguarda do salão onde decorrera o comício foram arrombadas mais tarde, "tendo o pobre do tanoeiro que ali dorme com sua familia, de fugirem d'ali a pedirem guarida á visinhança"; e as perseguições a começarem…
"Começam as perseguições: — processos a esmo, ameaças a todos que tiveram a ousadia de ir ouvir os oradores.
Aos padeiros disseram na segunda-feira que fossem vender o pão aos republicanos. Já se vê porque não deixaram comer no domingo a enorme quantidade de pão que tinham manipulado para os excursionistas.
Estamos mesmo a vêr que se se chega a proclamar a republica, muita gente por ahi se amua e não mais come; antes isso" — rematava com ironia o autor destas notas, lamentando "do fundo do nosso coração, com a força que nos dá a nossa consciencia, que só na Louzã se pratiquem selvagerias como as que acabamos de presenciar, venha a sua causa de onde quer que venha".
A última nota dava conta das senhoras que mandaram as creadas desfraldar panos negros, à chegada dos excursionistas. Panos que anunciavam o terror, na opinião do articulista. A atitude de tais senhoras ficava para já sem "nome":
"Não damos o nome porque ainda algum respeito temos pelas ideias dos outros, mas rasgada a cortesia de todo para comnosco, irá tudo".
Para os próximos números, o "Commercio da Louzã" prometia extractos do discurso de Ramada Curto, e de outros oradores do comício de 11 de Julho.

Um desordenado berreiro de vivas á Monarchia

O comício não haveria de decorrer na "ordem" desejada. Os sub-títulos da manchete da edição de 16 de Julho eram bem sinal disso mesmo:
"Chegada dos excursionistas — A contra-manifestação — Apedrejamento á casa do sr. Padilha onde se realisou o comicio e aos comboios que conduziam para Coimbra os excursionistas — Tiros — Arrombamento pela madrugada do dia seguinte 12 do corrente — Outras noticias".
Suficiente para percebermos que a Lousã viveu um domingo de autêntica polvorosa. O comboio especial trouxera cerca de 500 republicanos vindos de Coimbra para assistirem ao comício. Logo no percurso da estação ao Centro Republicano "Progresso", aos vivas aos chefes do Partido Republicano sucederam-se manifestações de apoio à monarquia, estas da autoria de contra-manifestantes.
"… Um desordenado berreiro de vivas á Monarchia, sendo a ultima palavra d'esta phrase, pronunciada pela maior parte d'essa pobre gente, sem a primeira syllaba, dando assim a ideia nitida da consciencia de quem levantava os vivas á Monarchia" — lia-se no jornal lousanense.
Aquando da primeira salva de palmas ao orador, "o nosso illustre conterraneo e talentoso advogado Dr. Fernandes Costa (…) de cá de fora apedrejavam as janellas, partindo muitos vidros, disparando-se alguns tiros de rewolver".
Fernandes Costa conseguiu suster os ânimos exaltados dos republicanos, que pretendiam deixar a sala para, no exterior, tirarem desforço dos monárquicos. De seguida usou da palavra "o dr. Antonio Augusto, parocho de Villa Secca".
"Os desordeiros eram os mesmos que em 1901 trouxeram toda a Louzã inquieta com os seus disturbios e os seus desrespeitos ás auctoridades; com a diferença de que então combatiam a eleição d'uma camara que sustou a venda dos baldios, que foram extorquidos ao livre disfructo dos pobres, recebendo o nosso municipio uma insignificancia por esses terrenos que hoje são propriedade dos abastados, e hoje promovem tumultos para que o pobre povo não oiça como são gastos os dinheiros que annualmente são arrancados á sua miseria, sem que com elles se trate de desenvolver as industrias, o commercio, a agricultura, a fim de evitar a enorme emigração para o Brazil e outros paizes" — acrescentava o "Commercio da Louzã", em prosa inaugurada lembrando uma vez mais o "Programma" enunciado no seu número inaugural:
"É necessario que mais uma vez digamos aos nossos conterraneos que o nosso jornal nascido para tratar dos interesses da comarca, se não affastará do seu programma, apesar das ideias republicanas dos seus directores. Enquanto puder viver será esta a sua linha de conducta, não podendo, morrerá no campo da honra".
Em consequência, prometia-se imparcialidade na descrição dos graves tumultos de domingo. Mas tal como o anúncio da realização do comício vinha prenhe de entrelinhas "republicanas", também a narração dos acontecimentos de domingo não conseguiria esconder a alma republicana dos seus directores.
"Vozearia arruaceira", "malta açulada", "desordenado berreiro", "pobre gente", "inconscientes", eram alguns dos epítetos elencados para classificar os contra-manifestantes.
A inauguração do Centro Republicano da Lousã ficava assim manchada por graves distúrbios, e haveria de constituir tema obrigatório das edições seguintes do "Commercio da Louzã".

terça-feira, 7 de julho de 2009

Uma pobre rapariga, com o labio superior completamente rachado

Ainda nesta edição, chamava-se a atenção das autoridades para as irrequitudes de alguns garotos, que se divertiam atirando pedras às árvores:
"Á auctoridade competente — Chamamos a atenção da auctoridade competente para o facto de os garotos todos os dias se entreterem a atirar pedradas ás arvores da Praça do Municipio, com grande risco da segurança dos transeuntes que, com a imprudencia do rapazio, podem ser attingidos pelas pedradas.
Ainda ha dias vimos uma pobre rapariga, com o labio superior completamente rachado, sendo dito por ella que tinha sido uma pedrada atirada por um rapaz.
Alem d'isto, resulta tambem o prejuizo para as proprias arvores, que estão sendo damnificadas com o furor dos rapazes.
É preciso lembrarmo-nos de que vivemos n'uma villa, e não em alguma povoação sertaneja.
Ahi fica o competente aviso.
Dias depois, os adultos haveriam de imitar os garotos. Os alvos não eram agora as árvores da Praça do Município, mas os excursionistas republicanos vindos de Coimbra.

O povo espera com curiosidade a festa dos republicanos

Para o comício da Lousã, o "Commercio" também augurava ordem:
"O povo espera com curiosidade a festa dos republicanos, e estamos certos de que se a manifestação se limitar apenas ao comicio no recinto já designado, que não haverá a mais pequena nota discordando assim uma prova da sua hospitalidade aos excursionistas que por certo irão dizer que a Louzã merece ser visitada não só pelas suas bellezas naturaes que são importantes como ainda pela corsura do seu povo.
Lá iremos, para no proximo numero fazer a nossa modesta apreciação".

Aos rancores dos monarchicos não responderemos com a pena de Talião

Um discurso que Bernardino Machado proferira num comício em Viseu, merecia relevo na edição treze, de 29 de Junho. No jornal seguinte, uma breve anunciava comício republicano também na Lousã:
"No proximo domingo terá logar no grande salão do sr. Bernardino Lopes Padilha, proximo da estação um comicio promovido pelo Centro Ramada Curto, de Coimbra, em que usarão da palavra além do nosso illustre conterraneo sr. dr. Fernandes Costa, que tão considerado é entre nós pelo seu muito saber, os grandes propagandistas da ideia republicana os srs:
Dr. Malva do Valle, Dr. Julio da Fonseca, Ramada Curto, José Cardoso, Julio Gonçalves, Pestana Junior, Carneiro Franco, Mario Malheiros e Floro Henriques, constando-nos á ultima hora que virá o sr. Dr. Bernardino Machado.
Este comicio que trará á Louzã mais de 400 pessoas, entre as quaes a maior parte virá por aproveitar o comboio especial a preços baratissimos, para apreciar as suas bellezas ha-de forçosamente ficar bem gravado na memoria de todos pela ordem como veem sendo feitos os comicios d'esta natureza".
O ênfase na "ordem" sabia a pedido aos lousanenses. Aos republicanos de nada interessavam tumultos, sendo estes o pior que lhes podia acontecer, dando pretextos de bandeja aos seus detractores, que assim e com facilidade poderiam anunciar ao povo pacato ou monarquia ou barafunda.
Bernardino Machado já em Viseu repisara a tecla da ordem, de um partido republicano pacificador:
"O partido republicano é hoje a unica força pacificadora da nação, porque é o unico partido que se apoia nos dictames da razão publica (…) Suceda, porem, o que suceder, aos embustes, ás degradações, ás violências e aos rancores dos monarchicos não responderemos com a pena de Talião".
O partido republicano queria-se da tolerância, e sinal disso o facto de, no dito comício de Viseu até se terem tolerado vivas à monarquia "em contraste com o que succede fóra das assembleias republicanas onde os vivas á Republica são declarados subversivos".
Terminando, Bernardino Machado "pediu que lá fora mantivessem todos a mesma ordem que tinha reinado naquella assembleia".